Vivemos num Mundo conturbado repleto de problemas e incertezas perante o teatro da Vida. Quando os olhos se embaciam, o silêncio fala e as interrogações permanecem...é chegado o momento de meditarmos e nos abrirmos à FILANTROPIA
Sexta-feira, 6 de Abril de 2007
Os Cristos no Mundo

 

         Este mês, em que se celebra a Páscoa, achei oportuno falar de um grande escritor italiano chamado Curzio Malaparte. Este autor escreveu dois livros muito marcantes logo após a II Guerra Mundial: A Pele e Kaputt.

         O livro “A Pele” marcou-me profundamente quando o li há  alguns anos. É escrito com ódio e paixão, com fogo e fúria, com sarcasmo e lirismo. “A Pele” é um livro que irrita e comove, ofende e inspira.

         Curzio Malaparte (seria interessante consultarem a sua biografia na Internet) descreve com admirável lucidez a que baixos níveis a condição humana se afunda quando o conflito da guerra transforma alguns homens em seres inferiores a bichos.

         É um texto de sangue que nos fascina pela sua actualidade. Da II Guerra Mundial aos dias de hoje pouco ou nada mudou. Hoje as guerras são focos constantes que se espalham pelo mundo como uma doença incurável.

         Nada nos espanta seja nos jornais, telejornais ou mesmo em conversas de café, ouvirmos falar dos jovens mortos em combate como uma notícia vulgar, sem horror.

         Os jovens ao nascer, porque a natureza humana assim o quer, foram embalados e amados pelas seus pais. Merecem esta indiferença? Este destino? E o direito à  sua própria vida? Para quando a Paz em toda a sua essência?

         Quantos e quantos jovens foram mortos por interesses políticos, petróleo, diamantes, ambição desmedida de tantos indiferentes poderosos!

         “A Pele” é um livro amargo, duro, violento mas muito actual...A realidade da guerra, da fome, de muitos viverem como animais em situações de conflito, continua nos nossos dias. Que ninguém o ignore.

         Alguns excertos deste livro que transcrevo tem muito a ver com a Páscoa que celebramos. Desejo sinceramente que os jovens que assinam tantos blogs com a alegria natural da sua juventude, ilusões, desilusões, sonhos, se debrucem sobre este tema tão marcante.

 

         Mas depois da libertação os homens tiveram de lutar para viver. É uma coisa humilhante, horrível, é uma necessidade vergonhosa lutar para viver. Só para viver. Só para salvar a própria pele. Já não é a luta contra a escravidão, a luta pela liberdade, pela dignidade humana, pela honra. É a luta contra a fome, a luta por um pedaço de pão, por um pouco de lume, por um farrapo para cobrir os filhos, por um pouco de palha para estender o corpo. Quando os homens lutam para viver, tudo, até uma panela vazia, uma ponta de cigarro, uma casca de laranja, uma côdea de pão seco apanhada no lixo, tudo tem para eles um valor enorme, decisivo. Os homens são capazes de todas as velhacarias para viver: de todas as infâmias, de todos os crimes para viver...Estão prontos a ajoelharem-se, a arrastarem-se pelo chão, a lamberem os sapatos de quem pode matar-lhe a fome...e têm um sorriso humilde, doce, um olhar cheio de uma esperança famélica, bestial, uma esperança espantosa.”

        

***

         “- A pele.

         - A pele? Qual pele?

         - A pele – respondi em voz baixa – a nossa pele, esta maldita pele. O senhor não imagina sequer do que é capaz um homem, de que heroísmos e infâmias é capaz para salvar a pele. Esta, esta pele suja, está a ver?...

         Tempo houve em que se sofria a fome, a tortura, os mais terríveis padecimentos, se matava e se morria, se sofria e fazia sofrer, para salvar a alma, para salvar a própria alma e a dos outros. Era-se capaz de qualquer grandeza e de qualquer vilania para salvar a alma. Hoje, sofre-se e faz-se sofrer, mata-se e morre-se, realizam-se feitos maravilhosos e feitos horrendos, já não para salvar a própria alma, mas para salvar a própria pele. O resto não conta. É-se herói, hoje, por bem pouca coisa! Por uma feia coisa. A pele humana é uma coisa feia. Veja. É uma coisa suja. E pensar que o mundo está cheio de heróis prontos a sacrificar a própria vida por uma coisa assim.

         -Tout de même...- disse o General

         - Não pode negar senão em confronto com todo o resto...hoje, na Europa, vende-se tudo: honra, pátria, liberdade, justiça. Há-de reconhecer que é coisa sem importância vender os próprios filhos.

         - O senhor é um homem honesto – disse o General – Não venderia os seus próprios filhos.

         - Quem sabe? – respondi em voz baixa – Não se trata de ser um homem honesto, não significa nada ser uma pessoa de bem. Não é uma questão de honestidade pessoal. É a civilização moderna, esta civilização de Deus, que obriga os homens a dar uma tal importância à própria pele. Só a pele conta agora. De seguro, de tocável, de inegável, não há senão a pele. É a única coisa que possuímos, Que é nossa. A coisa mais mortal no mundo. Só a alma, ai de nós!, é imortal... Mas que valor tem a alma hoje? Só a pele é que conta. Tudo é feito de pele humana. Até as bandeiras dos exércitos são feitas de pele humana. Já ninguém se bate pela honra, pela liberdade, pela justiça. Todos se batem pela pele, por esta suja pele.”

***

 

         “Jamais gostei tanto de uma mulher, de um irmão, de um amigo, como gostei de Febo. Era um cão igual a mim. E foi para ele que escrevi as páginas afectuosas de “Um Cão Igual a Mim”. Era um ser nobre, a mais nobre criatura que encontrei na minha vida. Pertencia àquela rara e delicada família dos galgos, vindos das terras da Ásia...

A sua pele era cor da lua, rosa e dourada, a cor da lua sobre o mar, a cor da lua sobre as escuras e brilhantes folhas dos limoeiros e das laranjeiras, sobre as escamas de peixes mortos que o mar, depois das tempestades, deixava no litoral, diante da porta da minha casa...

         Jamais se afastava de mim um passo que fosse. Seguia-me como um cão. Digo que me seguia como um cão...

Dele, muito mais que dos homens e da sua cultura, e da sua vaidade, aprendi que a moral é gratuita, que é um fim em si mesma, que não pretende nem sequer salvar o mundo (nem sequer salvar o mundo!), mas unicamente inventar sempre novos pretextos para o seu desinteresse, para o seu livre exercício. O encontro de um homem e de um cão é sempre o encontro de dois espíritos livres, de duas formas de dignidade, de duas morais gratuitas...

         Um dia saiu e não voltou mais. Esperei-o até ao fim da tarde e, caída a noite, corri pelas ruas chamando-o pelo nome...

         Levei a manhã a correr de canil em canil, e finalmente um tosqueador, numa lojeca próxima perguntou-me se eu estivera na Clínica Veterinária da Universidade, onde os ladrões de cães vendem, por pouco dinheiro, os animais destinados a experiências clínicas...

         Quando entramos, todos os cães nos olharam, fitando-nos com uma expressão implorativa e, simultaneamente, carregada de uma atroz suspeita: seguiam com o olhar cada gesto nosso e, tremendo, espiavam-nos as bocas...

         De repente vi Febo.

         Estava estendido sobre o lombo, o ventre aberto, uma sonda mergulhada no fígado. Olhava-me fixamente e tinha os olhos cheios de lágrimas. Mostrava no olhar uma maravilhosa doçura. Respirava levemente, com a boca entreaberta, sacudido por um tremor horrível. Olhava-me fixamente, e uma dor atroz roía-me por dentro. “Febo”, disse eu em voz baixa. E Febo olhou-me com uma maravilhosa doçura nos olhos. Eu vi Cristo nele, vi Cristo nele crucificado, vi Cristo que me olhava com os olhos cheios de uma doçura maravilhosa. “Febo”, disse eu em voz baixa, curvando-me para ele, acariciando-lhe a testa. Febo beijou-me a mão e não soltou um gemido.

         O médico aproximou-se, pegou-me no braço:

         - Não posso interromper a experiência – disse. – É proibido. Mas por sua causa...dou-lhe uma injecção. Não sofrerá.

         Tomei a mão do médico entre as minhas mãos e disse, com as lágrimas a descerem-me pelo rosto:

         - Jure-me que não sofrerá.

         - Ficará a dormir para sempre - assegurou o médico. - Desejaria que a minha morte fosse tão suave como a dele.

        - Fecharei os olhos. Não quero vê-lo morrer. Mas trabalhe depressa, trabalhe depressa! - respondi.

        - Um momento só - disse o médico e afastou-se sem ruído, deslizando no oleado. Foi ao fundo da sala, abriu o armário.

       Eu fiquei de pé diante de Febo; tremia horrivelmente, as lágrimas sulcavam-me o rosto. Febo olhava-me fixamente e nem o mais leve gemido lhe saía da garganta, olhava-me fixamente com uma maravilhosa doçura nos olhos. Também os outros cães, estendidos sobre o lombo, nos seus berços, me olhavam fixamente, com a mesma maravilhosa doçura nos olhos, e nem o mais leve gemido lhes saía das gargantas.

       De repente, um grito de pavor saiu-me do peito:

       - Porquê este silêncio? - gritei - Que é este silêncio?

      Era um silêncio horrivel. Um silêncio imenso, glacial, morto, um silêncio de neve.

      O médico aproximou-se com uma seringa na mão:

      - Antes de os operarmos - explicou - cortamos-lhes as cordas vocais.

***

 

         “Éramos homens vivos num mundo morto. Já não tinha vergonha de ser homem.

         Que importava que os homens fossem inocentes ou culpados? Só havia homens vivos e homens mortos sobre a terra. O resto não contava. O resto não era senão medo, desespero, arrependimento, ódio, rancor, perdão, esperança. Estávamos no cume de um vulcão extinto...

         Lá longe, até onde o meu olhar podia chegar, milhares e milhares de cadáveres cobriam a terra. Não passariam de carne morta, esses mortos, se não tivesse havido entre eles alguém que se sacrificara pelos outros, para salvar o mundo, para que todos os que, vencedores ou vencidos, tinham sobrevivido aos anos de lágrimas e de sangue, não tivessem de se envergonhar de serem homens. Entre esses cadáveres, entre esses milhares e milhares de homens mortos, estava com certeza o cadáver de um Cristo. Que seria do mundo, de todos nós, se entre tantos mortos não estivesse um Cristo?

         - Para que é preciso outro Cristo? – disse Jimmy. – Cristo já salvou o mundo, duma vez para sempre.

         - Oh, Jimmy -  porque não queres compreender que todos esses mortos seriam inúteis se não houvesse um Cristo entre eles? Por que não queres compreender que há com certeza milhares e milhares de Cristos entre todos esses mortos? Tu também sabes que não é verdade que Cristo tenha salvado o mundo duma vez por todas. Cristo morreu para nos ensinar que cada um de nós pode tornar-se Cristo, que cada homem pode salvar o mundo com o seu próprio sacrifício. Também Cristo teria morrido inutilmente se cada homem não pudesse tornar-se Cristo e salvar o mundo.

         - Um homem não é senão um homem – disse Jimmy.

         - Oh Jimmy, por que não queres compreender que não é necessário ser filho de Deus, ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, e ter assento à mão direita de Deus Pai, para se ser Cristo? Foram esses milhares de mortos, Jimmy, que salvaram o mundo.

         - Dás demasiada importância aos mortos – observou Jimmy. – Um homem só conta se estiver vivo. Um homem morto não é senão um homem morto.

         - Entre nós, na Europa – respondi, só os mortos contam.

         - Estou cansado de viver entre os mortos – tornou Jimmy. Sinto-me contente por voltar a casa, por voltar à América, é um país rico e feliz.

         - Sei muito bem, Jimmy, que a América é um país rico e feliz. Mas não irei, devo ficar aqui. Não sou um covarde, Jimmy. E depois, também a miséria, a fome, o medo, a esperança são coisas maravilhosas. Mais que a riqueza, mais que a felicidade.

         - A Europa é um monte de lixo – disse Jimmy – um pobre país vencido. Vem connosco. A América é um país livre.

         - Não posso abandonar os meus mortos Jimmy. Vocês levam os seus mortos para a América. Todos os dias partem para a América navios carregados de mortos. Morreram ricos, felizes, livres. Mas os meus mortos não podem pagar o bilhete para a América, são pobres demais. Nunca chegarão a saber o que é a riqueza, a felicidade, a liberdade. Viveram sempre na escravidão; sofreram sempre a fome e o medo. Serão sempre escravos, sofrerão sempre a fome e o medo, mesmo mortos. É o destino que lhes coube Jimmy. – Se soubesses que Cristo jaz entre eles, entre esses pobres mortos, ias abandoná-Lo?

         - Não queres com certeza que eu acredite – ponderou Jimmy - que também Cristo perdeu a guerra.

         - É uma vergonha ganhar a guerra – disse eu em voz baixa.”

 

Excertos tirados do livro “A Pele” de Curzio Malaparte – Editora Civilização Brasileira (1962)(315 páginas)

 

Aida Nuno

 

 

 

 


sinto-me:

publicado por criar e ousar às 02:21
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2 comentários:
De paula e rui lima a 16 de Abril de 2007 às 14:04
olá

Há uma excelente adaptaçõa de "A Pele" para o cinema feita pela cineasta italiana Liliana Cavani e com o Marcello Mastroianni.

se gostas de cinema vem visitar-nos em

www.paixoesedesejos.blospot.com

todos os dias falamos de um filme diferente

paula e rui lima


De criar e ousar a 17 de Abril de 2007 às 19:45
Olká amigos!

Fui ver o vosso blog e gostei. Adicionei-o aos Favoritos. Vou com mais calma ler os vossos artigos.
Selecciono e vejo muitos filmes. obrigada.

Aida


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